"Estávamos todos cansados da guerra", diz Corsino Tolentino
2 de outubro de 2014Natural da ilha de Santo Antão, André Corsino Tolentino foi estudar para Lisboa em 1966. Um ano depois, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) apreendeu-lhe livros no Lar dos Estudantes Ultramarinos. Foi expulso por alegadamente pertencer a uma rede contra a nação portuguesa.
Em 1970, Corsino Tolentino passa a dedicar-se inteiramente à luta de libertação nacional como dirigente do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAICG).
Regressou a Cabo Verde em 1974. Em agosto de 1975, dirigiu a primeira missão do Governo de Cabo Verde independente a Portugal, quando era secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. Posteriormente assumiu o cargo de ministro da Educação.
Foi diretor da Fundação Calouste Gulbenkian e promotor do Instituto para a África Ocidental (IAO). Atualmente é administrador não executivo da Fundação Amílcar Cabral.
DW África: Conseguiu uma bolsa para estudar em Lisboa, onde chega em 1966. Nessa altura, conhece a rede de estudantes africanos que se encontrava em Portugal. É a partir destes contactos que surge a vontade de abraçar o movimento de libertação?
Corsino Tolentino (CT): De forma organizada, sim, embora a formação nacionalista tenha começado um pouco antes, já no Liceu Gil Eanes, na Ilha de São Vicente. De qualquer modo, a viagem para Lisboa ou a inserção naquilo que poderíamos hoje chamar de rede de estudantes nacionalistas cabo-verdianos representou um salto qualitativo na medida em que o conhecimento era mais organizado e de melhor qualidade, digamos assim.
DW África: Em 1967, um ano depois da sua chegada a Lisboa, a PIDE apreendeu-lhe livros no Lar dos Estudantes Ultramarinos, onde se encontrava alojado. É expulso e fica sem bolsa. O Ministério do Ultramar acusa-o de pertencer a uma rede contra a Nação. Este episódio marcou-o profundamente?
CT: Marcou. As visitas da PIDE não abrangiam toda a gente, mas eram muito frequentes. Elas ajudaram muitas vezes a tomar a decisão de romper com o sistema colonial.
Porque a PIDE levava sem autorização, de uma maneira despótica mesmo, aquilo que para nós tinha valor, como se fosse uma coisa perfeitamente normal. No meu caso foram os livros, nomeadamente alguns que tinha adquirido em França, que estava a anos-luz de Portugal nos anos 60, pelo menos em termos de democracia formal.
Por outro lado, há também aquele aspeto chocante da intrusão no teu espaço, teoricamente privado. Essa visita teve um impacto forte na minha formação e teve consequências imediatas - cortaram a minha fonte de subsistência e expulsaram-me do Lar dos Estudantes Ultramarinos. Há uma situação de rutura que levou, no meu caso, à decisão radical de sair o mais depressa possível do espaço português. Isso significava, naquela altura, sair para nunca mais voltar ao sistema colonial.
DW África: E daí seguiu para França, passou pela Suíça até chegar finalmente à Bélgica. Na Universidade de Lovaina encontra uma comunidade de cabo-verdianos e também um grupo de professores que apoiava os estudantes das colónias. Era um ambiente bem mais favorável à luta de libertação?
CT: Era. É preciso ver que, na altura, a fronteira de Portugal era nos Pirenéus. Porque havia uma aliança entre Salazar e Franco, que vinha de longe, e fazia com que nós só nos sentíssemos livres de facto depois de passar para o outro lado dos Pirenéus. No ano anterior, eu tinha estado em França e era indescritível a diferença que existia entre essas duas sociedades, porque era o ano de todas as liberdades, pelo menos de todas as contestações, o Maio de 68. É nesse ambiente que saio, é o ambiente do "salto".
Uma particularidade que me atraiu muito era que a Universidade de Lovaina reconhecia a comunidade cabo-verdiana como uma nacionalidade. Estávamos lá como cabo-verdianos e não emprestados como portugueses, como era habitual. Isso era muito significativo para nós.
Essa comunidade de estudantes já tinha um relação com a comunidade vizinha, principalmente com a França e a Holanda. Havia até um certo intercâmbio cultural entre estes estudantes e os emigrantes daquela região, o que veio a transformar-se depois numa espécie de acordo de cooperação com o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que atribuiu aos estudantes cabo-verdianos de Lovaina a responsabilidade de interagir com os emigrantes. O primeiro objetivo era conseguir mobilizar alguns jovens emigrantes cabo-verdianos. Por outro lado, era preciso difundir a mensagem de libertação. Utilizámos várias vezes os emigrantes para trazer mensagens para Cabo Verde.
DW África: O que é que era mais difícil na mobilização de emigrantes, sobretudo numa época em que se temia muito o comunismo?
CT: Nós éramos terroristas para o regime salazarista, para a ditadura portuguesa, mas éramos também uma espécie de mensageiros do comunismo. E do comunismo no seu pior, daquele comunismo que chega e redistribui tudo o que se tem, desde o mais íntimo. Portanto, havia que desfazer essa ideia, o que era relativamente fácil quando as pessoas conheciam a realidade, os interlocutores.
Por exemplo, quando eu falava com as pessoas de ilha de Santo Antão era relativamente fácil desmontar esta propaganda. Para os meus colegas da ilha de Santiago, de São Vicente ou da ilha da Boa Vista era igualmente fácil, mas o encontro tinha de acontecer e a conversa tinha de ocorrer também para que isso fosse possível.
DW África: Em 1970 é chamado para se dedicar inteiramente à luta por Amílcar Cabral. Recebeu um bilhete de comboio para ir até Berlim e de onde viajaria de avião até à Guiné-Conacri. Neste seu primeiro contacto com África continental conhece Amílcar Cabral. Como é que foi passar do sonho à realidade?
CT: O sonho tornou-se real, por exemplo, quando contactei pela primeira vez com Amílcar Cabral "himself". Pensei: Aqui está o líder, naquela altura, falado em todo o mundo. E quando temos a oportunidade de o encontrar, de dialogar e vermos colegas, alguns que conheci no passado e que reencontro no continente africano, que eu pisava efetivamente pela primeira vez, aí as coisas estão misturadas. É o sonho e a realidade juntos, mas o resto é mais realidade do que sonho.
DW África: Recebeu treino militar de infantaria em Madina do Boé, no Leste da Guiné, em 1971, e depois durante um ano esteve na Escola da Marinha em Odessa, que incluía formação prática no Mar Negro. E foi nesta altura que duas tripulações foram treinadas para um eventual desembarque de guerrilheiros em Cabo Verde. Acreditava realmente que algum dia a luta de guerrilha, no sentido clássico, seria possível em Cabo Verde?
CT: Eu pertencia provavelmente a uma segunda geração de jovens treinados para um eventual desembarque em Cabo Verde. A primeira tripulação tinha sido formada em Cuba, com grande envolvimento e participação direta de Fidel Castro e de Che Guevara, que viam em Amílcar Cabral e no PAIGC uma espécie de parceiros genuínos daquilo que consideravam o melhor para as Caraíbas e também para a América Latina.
Nós éramos militantes do PAIGC, isto é, lutávamos pela independência da Guiné e de Cabo Verde. Penso que em termos de pensamento estratégico, Amílcar Cabral foi realmente ímpar nesta matéria ao ter pensado e batalhado até conseguir formar o PAIGC com guineenses e cabo-verdianos para a libertação desses dois territórios. Porque a coisa teria sido muito diferente e provavelmente muito mais difícil se tivesse tentado ou só a Guiné ou só Cabo Verde. Enfim, a luta desenvolve-se mais na Guiné do que em Cabo Verde e esse também era um ponto de discórdia.
DW África: Havia muita frustração aqui em Cabo verde quando o desembarque não se concretizou. Como é que lidavam com essas críticas?
CT: Havia frustração dentro do próprio PAIGC e havia frustração na emigração cabo-verdiana. Só depois viemos a saber que, de facto, era muito difícil, em termos militares, sobreviver a um desembarque nas ilhas de Cabo Verde. Era altamente perigoso porque podia haver um relativamente fácil aniquilamento dos guerrilheiros e esse foi um ponto de discórdia entre os teóricos da guerrilha. Houve discórdia entre Amílcar Cabral e Che Guevara na altura, porque Che Guevara defendia o princípio dos focos. Dizia que desde que as pessoas se instalem e tenham armas, munições e o abastecimento garantido do exterior, a guerrilha poderá depois mobilizar a base e avançar. E Cabral defendia que a guerrilha só vinga se emergir da população local.
Houve vários treinos e, pouco antes do assassinato de Amílcar Cabral, em 1973, continuava viva a ideia de um provável desembarque em Cabo Verde. Depois, felizmente, não veio a ser necessário, porque entretanto surgiu o 25 de Abril de 1974 que foi resultado desses movimentos todos. Para nós, logo depois do assassinato de Amílcar Cabral, o mais importante era conseguir assegurar a independência da Guiné-Bissau, afirmá-la no plano internacional como território independente, um Estado que foi reconhecido por mais de seis dezenas de Governos e que valeu muito nas negociações entre o novo executivo, legitimado pelo golpe de Abril de 1974, e o PAIGC.
DW África: Quando Amílcar Cabral foi assassinado em janeiro de 1973, o que é que sentiu? Sentiu que se podia matar o homem mas não a luta?
CT: O assassino de Amílcar Cabral, Inocêncio Kani, tinha sido meu chefe na Marinha. Um certo conflito existente na própria Marinha e a conspiração que atravessava uma boa parte do PAIGC na altura provocaram uma redistribuição dos quadros. A mim coube-me ir trabalhar no CIPM [Centro de Instrução Política e Militar do PAIGC] em Madina do Boé. Portanto, quando Amílcar Cabral é morto, a primeira sensação não foi de dizer: "Esta luta vai até ao fim, vamos conseguir a libertação, vamos conseguir o nosso objetivo máximo." Registei uma espécie de queda no vazio. Era um pouco como dizer: "Como é possível? Isto acabou." Mas é ao mesmo tempo uma interrogação, uma inquietação. Um dos episódios mais marcantes da minha vida foi precisamente esse.
Através de múltiplas rádios, da nossa Rádio Libertação, mas também de outras rádios, como a Deutsche Welle, por exemplo, sentíamos formar-se uma espécie de onda de resistência a todo o tipo de desânimo que nos estava a cobrir de certo modo. E é nesse processo que me lembro de ter estado quase estático a observar a formação desta onda, a que eu chamo uma espécie de transformação do desânimo óbvio numa nova energia que acabou por ser irreversível.
DW África: Encontrava-se na Bélgica quando se deu o 25 de Abril de 1974 em Portugal. Como é que reagiu à notícia, ficou desconfiado?
CT: Fiquei desconfiado porque as primeiras notícias que saíram sobre o 25 de Abril eram confusas. A própria situação era confusa. Mas nós, no PAIGC, tínhamos uma razão especial para estarmos desconfiados porque António de Spínola era o governador da Guiné. A notícia sobre o golpe de 25 de Abril de 1974 está muito ligada à divulgação do livro "Portugal e o Futuro" de António de Spínola. Ele é apresentado nas primeiras notícias como estando à frente ou como sendo um elemento muito importante para esse movimento.
Para nós, Spínola era um adversário temível. Ele tinha conseguido, de certo modo, transformar a guerra na Guiné, ganhar algumas vantagens através da política da "Guiné Melhor" e através da africanização das tropas. E tinha uma aversão muito particular em relação aos cabo-verdianos, principalmente os do PAIGC, porque, segundo a análise que fazia, o problema real para ele eram os cabo-verdianos. E se conseguisse separar os cabo-verdianos dos guineenses encontraria muito facilmente uma solução para a Guiné. Portanto, foi-me necessário algum tempo para dizer: Sim, isto foi mesmo para valer. À medida que fomos cruzando informação, fomos desfazendo as dúvidas até sabermos concretamente que era o fim da ditadura.
DW África: E em maio de 74 foi para Conacri, que era então o santuário do PAIGC, e depois seguiu para as zonas libertadas. Qual era o ambiente que se vivia nesta altura?
CT: Houve uma explosão de alegria. A guerra durou muito tempo, mais de dez anos. Esse cansaço manifestava-se através de conspirações, da desistência de operações, falta de apoio das populações ou através da deserção para o inimigo.
Estávamos todos cansados da guerra, quer as tropas coloniais quer a resistência. Por conseguinte, a substituição do poder em Portugal e as declarações seguintes de predisposição para realizar a Descolonização, a Democracia e o Desenvolvimento só podia ser bem-vindas. É neste contexto que o ambiente muda radicalmente.
DW África: Visitou Portugal em agosto de 1975 quando se acreditava, nas suas próprias palavras, na "magia dos três D": Descolonizar, Democratizar e Desenvolver. Quatro décadas depois essas ambições foram atingidas? A luta valeu a pena?
CT: A luta valeu a pena, não tenho dúvida, primeiro porque conseguimos a descolonização e iniciámos os restantes D. A democratização está em curso, a um ritmo satisfatório, e o desenvolvimento também.