Cabo Delgado: deslocadas denunciam à ONG abusos sexuais
26 de outubro de 2020O número de deslocados internos em Moçambique cresceu 2.700% em dois anos e representa hoje 1,4% da população do país, sem ajuda que chegue, destaca um relatório do Centro de Integridade Pública (CIP), divulgado esta segunda-feira (26.10).
"Cerca de 1,4% da população moçambicana encontra-se atualmente deslocada, devido aos ataques armados em Cabo Delgado e no centro do país", ou seja, 424.002 afetados de um total de 29 milhões de habitantes, nota o documento da ONG Moçambicana.
De acordo com o estudo de campo do CIP até ao final de 2018, Moçambique tinha cerca de 15 mil deslocados internos causados pelos conflitos armados de Cabo Delgado e da região centro. Até 19 de outubro de 2020, o total de deslocados no país passou para 424.202, em consequência da intensificação dos ataques armados.
O relatório diz que crescente número de deslocados internos atingiu mais de 300 mil até ao final do mês de setembro de 2020, o correspondente a cerca de 13% da população da província nortenha.
No distrito de Mueda, por exemplo, o número de deslocados registados nas listas de apoio alimentar duplicou em apenas um mês. No início de julho, eram assistidas cerca de 15 mil famílias. Em finais de agosto, o número aumentou para 29 mil.
Poucos em centros de acolhimento
Do total de 86.562 famílias deslocadas, apenas 3.981 vivem em 13 centros de acolhimento instituídos pelo Governo e parceiros nas províncias de Cabo Delgado (seis), Nampula (quatro), Niassa (um) e Manica (duas).
Sofala e Inhambane são outras providências que acolhem deslocados, mas sem nenhum centro de acomodação criado para o efeito.
O CIP realça que só 4,6% dos agregados familiares em fuga se encontram em centros de acolhimento. Ou seja, quase todos os afetados na crise humanitária vivem "em agregados que os acolhem, na maioria dos casos sem o mínimo de condições básicas para garantir a sua sobrevivência".
"O Governo central deve instalar urgentemente centros de acolhimento para os deslocados que vivam em casas de familiares e amigos e receber com o mínimo de dignidade os deslocados que continuam a chegar das regiões sob ataque em Cabo Delgado", recomenda o relatório.
Abusos sexuais
No terreno, o CIP testemunhou relatos de abusos ou tentativas de abusos sexuais das mulheres deslocadas, perpetrados “pelas autoridades locais, que têm o poder de elaborar as listas dos deslocados que devem receber os socorros". Segundo o relatório, "em troca da inclusão nas listas, as lideranças locais exigem favores sexuais de mulheres e meninas vulneráveis".
A situação foi detetada sobretudo nos bairros de Pemba, capital da província, e menos frequentemente na província de Nampula e na generalidade dos campos de deslocados, mais organizados.
Apareceram também denúncias de casos de “aproveitamento de mulheres vulneráveis para a satisfação de necessidades lascivas”, mas não tem havido a necessária investigação conducente a responsabilização dos casos confirmados, explica o CIP.
“Através da Linha Verde de Resposta à Emergência - 1458, têm-se feito denúncias de casos de abusos e de desejo de ajuda mas é difícil dar seguimento pela dificuldade de localizar as vítimas e denunciantes”, lê-se. O documento explica ainda que “a Caritas Diocesana de Pemba tem uma caixa de reclamações” e que há queixas deixadas para a Post Distribution Monitoring (Monitoria pós-distribuição da ajuda).
Por outro lado, o CIP refere que organizações governamentais e agências das Nações Unidas têm feito do assunto "um tabu", em vez de o denunciarem à luz do dia para que todos ficassem cientes de uma "tolerância zero" para o abuso sexual.
"O abuso de mulheres nunca foi relatado nos relatórios das agências da ONU", lê-se na publicação do CIP.
Desvio de ajudas dos deslocados
O relatório denuncia anda que há muitos relatos de desvio da ajuda destinada aos deslocados, especialmente através da manipulação das listas de controlo da população necessitada de apoio, que chega das zonas de conflito. Alegadamente, as autoridades locais incluem nas listas nomes de pessoas que não são deslocadas do conflito.
O CIP esclarece que “a situação da manipulação das listas é do conhecimento tanto do Governo local como das Agências das Nações Unidas que lideram os clusters de ajuda no terreno. mas nunca foi tratada de forma aberta com a sociedade e muito menos denunciada. O que se tem feito é a verificação minuciosa das listas, tentando retirar os nomes de falsos deslocados.”
A elaboração destas listas está a cargo das autoridades dos bairros, que “não têm conhecimento nem responsabilidade para tão complexa e sensível atividade”, acusa o CIP. Contudo, o Governo não aceita que as organizações internacionais ou da sociedade civil que disponibilizam a ajuda elaborem as listas, alegando questões de soberania, explica o relatório.
Em Gingone¸ líderes religiosos denunciaram casos de desvio à responsável do cluster de segurança alimentar, Cristina Graziani, do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA). A representante do PMA participou o caso às autoridades judiciárias, contra os líderes locais, mas o caso não teve andamento até agora, apurou o CIP.
Ação tardia do Governo
O CIP acusa o Governo moçambicano de ter demorado muto tempo a reconhecer os ataques em Cabo Delgado como se tratando de uma “guerra de cariz terrorista”. Até finais de 2019, o Governo ainda recomendava as pessoas “a permanecerem nas suas aldeias e os que partiam em busca de locais mais seguros, eram aconselhados a retornarem às suas terras de origem, com a promessa de serem destacadas posições militares para proteger as populações, os seus locais de habitação e as suas propriedades.”
Para o CIP, esta política do Governo impediu a abertura de centros para o acolhimento dos deslocados internos bem como a mobilização de ajuda internacional.
A ONG recomenda o Governo a liderar a assistência humanitária aos deslocados, destacando equipas de profissionais multissetoriais para assistir às autoridades locais no registo dos deslocados e no apoio psicossocial.
Em Cabo Delgado, o CIP notou a ausência de instituições do Estado no terreno, vocacionadas para atender a situações de desastres humanitários, particularmente o Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC). A situação é diferente em Nampula, onde o INGC está mais presente no terreno.
Atualmente a questão da proteção em Cabo Delgado é liderada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) que, tal como outras agências da ONU, já está no terreno desde o tempo do ciclone Kenneth (2019).
600 ataques terroristas em três anos
“De outubro de 2017 a outubro de 2020, os insurgentes realizaram mais de 600 ataques terroristas nos distritos do norte e centro da província de Cabo Delgado, causando cerca de 2 mil mortes entre a população, das quais mais de 60% são de civis”, lê-se no relatório do CIP.
Alguns dos ataques da insurgência têm sido reivindicados desde junho de 2019 pelo grupo 'jihadista' Estado Islâmico, sendo que a verdadeira origem da violência continua sob debate.