Angolano é baleado por engano pela polícia no Brasil
8 de junho de 2020O encontro entre um angolano e uma brasileira acabou em tragédia na cidade de Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre, sul do Brasil. O crime, que também levantou questionamentos sobre racismo policial, ocorreu no último dia 17 de maio, quando o angolano de 26 anos e a brasileira Dorildes Laurindo, de 56, pegaram boleia num carro de uma aplicação. O casal havia se conhecido pela internet.
Gilberto Andrade de Casta Almeida reside na cidade de Anápolis, no Estado de Goiás, e Dorildes vivia em Cachoeirinha, município próximo a Porto Alegre. A convite da costureira, o angolano pegou um voo com destino ao Rio Grande do Sul. Gilberto queria conhecê-la e tinha um sonho de ver o mar pela primeira vez.
Foi então que o casal viajou até a praia de Tramandaí, balneário situado a cerca de 100 quilómetros de Porto Alegre. Os dois contrataram a BlaBlaCar, uma aplicação de boleias de longa distância, que conecta motoristas e passageiros dispostos a viajar entre cidades e compartilhar o custo da viagem.
No retorno do litoral, o casal chamou o mesmo motorista e a partir daí a tragédia terá começado, segundo o delegado de polícia que investigou o caso, Eduardo Limberger do Amaral. "Durante o retorno, o motorista - que já estava foragido por tentativa de feminicídio, e sabia desta condição - visualizou uma viatura da brigada militar, passou o sinal vermelho, e fugiu", explicou.
Veículo intercetado
Ainda segundo a polícia, a fuga começou na cidade de Cachoeirinha e estendeu-se até Gravataí, onde o veículo foi interceptado por outra guarnição da Polícia Militar. Houve reação por parte do motorista, informam relatos dos polícias, que revidaram com os disparos que atingiram Dorildes e Gilberto.
Entretanto, "quando os policiais militares apresentaram a ocorrência para o delegado de plantão, informaram que tanto o foragido quanto o angolano teriam reagido à abordagem policial, tendo em vista que próximo ao Gilberto foi encontrada uma arma de fogo'', explicou o delegado.
Gilberto Andrade foi atingido com tiros na perna direita e passou por uma cirurgia. Já a sua companheira, Dorildes Laurindo, foi baleada na medula e no abdômen. Após duas semanas internada em estado gravíssimo no hospital de Gravataí, a brasileira acabou por falecer. Depois do atendimento hospitalar, o angolano foi levado ao presídio na cidade de Canoas, onde ficou detido por 12 dias.
O angolano, que é técnico em radiologia, foi acusado pelos policiais militares de atirar contra a corporação. Entretanto, o inquérito da Polícia Civil concluiu que ele e a companheira foram vítimas e não tinham relação com o criminoso. Uma cópia do documento da conclusão do inquérito foi encaminhada ao comando do 17º Batalhão de Polícia Militar, que apura o caso.
Racismo
A advogada de defesa do casal, Ana Konrath, afirmou discordar de que o fato esteja relacionado ao crime de racismo, como referido por parte da imprensa brasileira. Isso porque, durante a ação, os policiais militares não sabiam que havia uma pessoa negra dentro do veículo. Tão pouco que o indivíduo era de nacionalidade estrangeira.
No entanto, uma ação judicial será acionada contra o Estado. "Será buscar através de uma ação de danos. Houve dano material e moral em favor de Gilberto e a sucessão aos familiares de Dorildes, que veio a falecer", disse a advogada.
À DW África, Gilberto relatou os momentos de terror que vivenciou. "Eu achei que ia morrer. Não deu tempo para nos explicar. Quando ele [o condutor] pára o carro, de repente, põe-se em fuga. Foi aí que abrimos a porta e descemos, então começaram os disparos. Depois que eu fui atingido, comecei a gritar: 'Sou inocente, não fiz nada, sou apenas um estrangeiro que pediu carona, vim de férias'". Segundo Gilberto, os policiais diziam-lhe que "iria sangrar até morrer", enquanto ele dizia ser inocente.
De acordo com o Ministério Público Estadual, um dos policiais militares envolvidos no tiroteio já havia sido condenado a sete meses de prisão por invasão de domicílio e agressão contra um adolescente durante uma abordagem, em 2016, também no estado do Rio Grande do Sul.
O militar também é acusado pelo mesmo ministério de agredir um carroceiro em 2018. O policial, de 35 anos, ainda responde por um terceiro processo por violência. Já os outros dois policiais envolvidos na ocorrência não possuem processos na Justiça Militar.
O condutor da aplicação Blablacar, Luiz Carlos Pail Junior, foi preso logo após o crime. O homem tem antecedentes criminais e usava documentos falsos.
Racismo no Brasil e nos EUA
Segundo a socióloga e professora da Universidade Federal de São Carlos, no interior do estado de São Paulo, Jaqueline Sinhoretto, uma pesquisa realizada pelo seu grupo de estudos que aborda a violência, administração de conflitos e a questão do policiamento e relações raciais, aponta que a polícia paulistana mata três vezes mais pessoas negras do que brancas. No estado do Rio de Janeiro, a proporção é ainda maior.
"Os dados de mortes por policiais, que são muito altos no Brasil, indicam essa desigualdade . No Rio de Janeiro, esta proporção [de mortes entre pessoas negras e brancas] chegou a quatro vezes, segundo os dados por nós levantados", afirma.
Além disso, "dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, atualizados anualmente, revelam que cerca de 70% das pessoas mortas pela polícia no Brasil são negras", ressaltou a professora do Núcleo de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos.
Se comparado aos Estados Unidos da América, a pesquisadora explica que a conquista da cidadania dos negros aconteceu de forma diferente do que no Brasil, já que "as relações raciais têm naturezas diferentes conforme a sociedade se organiza, com sua história e vivência [...]".
"Nos EUA, a conquista da cidadania pelos negros não foi como no Brasil, mas sabemos que nos dois países as camadas mais pobres e que mais sofrem violência, o controle social e a vigilância são as populações negras", acrescenta. Entretanto, no Brasil, "o número de pessoas mortas pela polícia chega a ser cinco vezes maior do que no país norte-americano", conclui a analista.